"a questão ambiental deve ser trabalhada não como resultante de um relacionamento entre homens e a natureza, mas como uma faceta das relações entre os homens, isto é, como um objeto econômico, político e cultural". (MORAES, 2002)

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Isto não é uma metáfora

Texto de Matheus Pichonnelli, disponível  clicando aqui
-Se todas essas áreas de florestas devastadas não são suficientes, então vou te mostrar outra foto.
-O que é isso?
-Um mar de lama.
-É uma metáfora?*
-Claro que não, rapaz. Isso é oportunidade.
-Eu só vejo lama.
-Eu vejo um lugar seguro.
-Como seguro? Olha o rebaixamento da nota. A inflação. A crise. O bolivarianismo.
-Que crise, meu caro? Que outro lugar do mundo dá pra pintar e bordar assim? Tô te falando, não tem lugar mais seguro para o seu dinheiro. Por muito menos o Obama ferrou com a BP.
-Isso era uma barragem, não?
-Era sim, mas não só.
-Como virou tudo isso?
-Amigo, debaixo dessa lama tem de tudo. Tem resíduos tóxicos. Tem resíduo industrial. Tem agrotóxico liberado. Tem resíduo hospitalar. Tem a máfia da prótese. Tem porto com megaestaleiro que virou esqueleto. Tem estaleiro que não sabe fazer navio. Tem estádio onde não tem futebol. Tem o sangue dos escravos. Tem os meninos amarrados no poste. Tem a prostituição das meninas. Tem o neto de imigrante xenófobo. Tem a falência do ensino público. As escolas fechadas. Tem homicídio que não entra na conta de homicídio. Tem Ministério Público que grita, grita e não faz marola. Tem ambientalista que faz campanha e vira ecochato. Tem até quem ultrapassa pelo acostamento. E motorista embriagado. Tem de tudo nessa lama. Ela passa todo dia debaixo das janelas e não dá pra chamar nem pai nem mãe porque eles estão todos nos escombros.
-E o governo?
-Que governo? Tá louco? Ali é tudo nosso. Ali a gente usa o banheiro de porta aberta. Pode ser prefeito, governador, ex-governador, presidente, senador, ministro, o caralho. É tudo nosso.
-E as vítimas?
-Das vítimas ninguém se lembra. Dali a duas semanas o assunto é outro.
-E a população?
-Essa quer saber de outras águas. Estão tudo na TV vendo o mar vermelho.
-Estou confuso.
-Vai por mim: ali quem apita é nóis. Licenciamento ambiental ali é palavrão. Você assina um termo de ajustamento, diz que vai ter contrapartida, plano de contingência, monitoramento, margem de proteção, refloresta, alarme quando tiver emergência e esquece. Ninguém vai te cobrar nada. A não ser que você comece a falar de feminicídio, Simone de Beauvoir, essas coisas. Aí não dá.
-Mas pensa no prejuízo que o dono dessa lama vai pagar…
-Que prejuízo? Essa conta já tá paga. Quem paga a janta ali é a gente, fera. Só que a janta ali tem outro nome. Ali ninguém dá nome pra essas coisas. Ali ditador vira nome de rua como presidente, criminoso é chamado de doutor, tragédia ambiental é acidente, agressor é pai de família e a gente é patrão. Lembra do positivismo do Auguste Comte que tu aprendeu na escola? Esses caras olham pra bandeira e acreditam. Por onde a gente passa a gente desertifica e deixa corpos no caminho. Alguns nunca vão ser encontrados. Mas pra eles essa lama envenenada é PROGRESSO.
-E não tem manifestação?
-Amigo, pra isso existe a borrachada. Gás de pimenta. Ali quem não reagiu está vivo. O resto paga a conta do enterro e esquece. Pra gente é dinheiro de pinga. A vida ali não Vale o gelo que tu bota no teu uísque.
-Pensando assim…
-Pode investir. Antes dessa lama toda sabe quanto a empresa faturou? Dois bilhões. Num ano. Pode investir. É seguro. Mas primeiro ajuda na campanha, tá? Faz o jogo de cena. Diz que tem um projeto. Vai lá e derruba tudo. Se a água acabar a gente pega a mala e vai embora.
-Tá. Ok. Colocar o dinheiro é fácil. Entendi. Mas e pra tirar, se é que você me entende?
-Meu bem, para isso sempre teremos a Suíça.

Foto: Agência Brasil, disponível na internet
 *Crônica descaradamente inspirada na charge de Laerte publicada na edição de terça-feira, 10/11, na Folha de S.Paulo

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